É papel de um Estado que se diz fundamentado nos direitos
humanos apoiar os jovens em sua entrada em uma vida sexual protegida, segura e
autônoma, em vez de tratá-la como temível e perigosa.
Por Gabriela Calazans, Dulce Ferraz
Sexualidade e juventude são assuntos que despertam grande
interesse na sociedade brasileira. Quando associados, geram debates acalorados
sobre questões ainda polêmicas, como a iniciação sexual “precoce”, os “riscos”
da gravidez na adolescência e a diversidade sexual. Esse último tema teve
destaque na disputa eleitoral pela Prefeitura de São Paulo, em função do kit
anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação na gestão de Fernando
Haddad, agora candidato. As reações provocadas pelo material educativo mostram
o cenário de conservadorismo em que estamos imersos e o temor que o rompimento
de paradigmas provoca em parte da sociedade.
Sexualidade e juventude são dois construtos sociais
fortemente naturalizados – a sexualidade como um “instinto natural” e a
juventude como uma “fase natural”.1 Ao subordinar a sexualidade a hormônios
“fervilhantes” da adolescência, associada ao desenvolvimento dos caracteres
sexuais secundários, produzem-se modelos educativos limitados a informar sobre
o amadurecimento sexual orgânico e o controle dos impulsos, a fim de prevenir
eventos que poderiam atrapalhar um certo ideal de juventude e de planos para o
futuro.
Mas a vivência da sexualidade extrapola essa dimensão
orgânica, assumindo significados singulares em trajetórias que se desenvolvem
em contextos específicos. As gerações mais recentes, submetidas às exigências
de maior escolarização para inserção profissional, têm experimentado o
adiamento de marcos biográficos importantes, como o término dos estudos, a
saída da casa dos pais e o início da vida profissional e conjugal. Aí a
sexualidade se configura num dos principais domínios da vida social para o
estabelecimento da autonomia de jovens em relação às famílias. 2 Representa o
aprendizado de como se estabelece um relacionamento afetivo e sexual, mesclando
experimentação pessoal e absorção da cultura sexual do grupo, envolvendo
representações, valores, papéis de gênero, rituais de interação e de práticas.
As intensas preocupações sobre sexualidade juvenil e o
universo da educação para a sexualidade inserem-se nesse contexto em que jovens
podem representar uma nova geração de valores. Valores distintos dos de seus
pais e das gerações anteriores. Um olhar para pesquisas recentes sobre
sexualidade juvenil pode ajudar a analisar se essa transformação vem ocorrendo
e de que maneiras.
As evidências contrariam o senso comum que proclama haver
uma iniciação sexual cada vez mais precoce e um descompromisso dos jovens em
suas relações afetivas. A idade média da primeira relação tem se mantido
estável no Brasil, acontecendo, em média, aos 14,9 anos. 3 A maioria dos jovens
mantém relações estáveis, nas quais ocorrem suas transas. Refletindo padrões de
gênero hegemônicos, rapazes iniciam-se mais precocemente do que moças, e estas,
frequentemente, mantêm-se em relação estável com seu primeiro parceiro sexual,
enquanto aqueles mantêm vários relacionamentos estáveis com parceiras distintas.
4
Ficar e namorar se afirmam, para jovens de ambos os sexos,
como etapas de experimentação afetiva e sexual com valor em si, desvinculadas
do caráter preparatório para o casamento anteriormente atribuído ao namoro. 5 O
ficar, em particular, introduziu mudanças de valores significativas, como a
transitoriedade das relações, a flexibilização do pacto de exclusividade das
parcerias e a suplantação da prerrogativa da iniciativa masculina.6 Como
desdobramento desse último ponto, a idade de iniciação sexual das mulheres
diminuiu cerca de dois anos em duas décadas.7
A gravidez ocorre mais precocemente entre mulheres do que
entre os homens, já que elas tendem a se relacionar com homens mais velhos, de
forma que é mais frequente a experiência de gravidez na adolescência entre as
mulheres; também é mais precoce entre adolescentes com menor escolaridade e
renda, mostrando-se relacionada às menores perspectivas de projeto de vida.8
O aborto segue sendo mais acessível e seguro para jovens
mais abastadas e mais arriscado para as mais pobres. Entretanto,
independentemente da classe social, mostra-se como uma decisão compartilhada
com familiares, parceiros e amigos, indicando uma atenuação de seu caráter de
segredo e tabu. 9
Há intensificação da visibilidade das demonstrações de afeto
entre casais homossexuais nos diversos espaços de convivência, assim como da
demanda pelo reconhecimento da legitimidade de suas uniões estáveis e famílias;
e, simultaneamente, um contexto cada vez mais violento de represálias da
exposição de jovens em condutas não heterossexuais no espaço público. 10
Depreende-se, daí, a existência de um cenário complexo, em
que transformações convivem com a permanência de valores hegemônicos sobre a
sexualidade, interagindo com mudanças em outras dimensões da vida social.
Diante dele, propostas de educação para a sexualidade na juventude devem além
de assegurar o acesso à informação, favorecer a compreensão dos cenários
relacionais em que os encontros sexuais ocorrem, o reconhecimento do desejo ou
não de estabelecer intimidade corporal com alguém, a capacidade de refletir
sobre as convenções sexuais e proteger-se tanto da eventualidade reprodutiva
como de potenciais doenças.
É papel de um Estado que se diz fundamentado nos direitos
humanos apoiar os jovens em sua entrada em uma vida sexual protegida, segura e
autônoma, em vez de tratá-la como temível e perigosa. Ao promover a educação
para a sexualidade, ao Estado cabe respeitar e proteger as decisões sexuais e
reprodutivas de mulheres e homens jovens, evitando que outros interfiram no
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, e promover esses mesmos direitos,
recusando quaisquer interferências de ordem religiosa nas políticas públicas
que atendam a esses deveres.
Gabriela Calazans
Mestre em Psicologia Social, CRT-DST/Aids da SES-SP,
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e Nepaids/USP
Dulce FerrazMestre em Medicina Preventiva, Fiocruz
(Brasília) e Nepaids/USP.
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